domingo, 18 de abril de 2021

As águas rasgadas



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Deitava o olhar naquela sombra do barco sobre o mar, como se fosse companheiro a seguir o mesmo caminho, num destino ainda incerto a que não queria, agora, pensar.

Quando partiu, nesta viagem solitária, era um homem de convicções firmes e vontades arrojadas.

Tinham passado muitos dias após a decisão de fazer a volta ao mundo nesse veleiro a que tinha dedicado uma estima e cuidados exímios. Para tal, estudou as rotas, a meteorologia, as correntes, os ventos e os mares. Tinha a quase certeza que um ano bastaria para concretizar esta ousadia e dela fazer a sua maior aventura.

Apetrechou-se de toda a tecnologia, alimentos e recursos indispensáveis a tão longo isolamento. Mentalmente estava apto e pronto à iniciativa como, aliás, outros o tinham já feito. Tinha a idade, saúde e motivação certas.

No dia aprazado para a partida, já no cais, olhou uma última vez para a cidade onde cresceu e, com a manhã a despender a luz crua de verão, sentiu um vazio profundo a expandir-se desde o estômago até ao mais profundo da sua alma.

Agora, em mar-alto, pela primeira vez, instalava-se no seu espírito a dúvida, a incerteza, na sua decisão. Esta poderia - mal ou bem - ser a sua última viagem.

Lembrou-se da despedida naquele cais quase vazio.  A última recordação daquele cidade extendida nas avenidas solitárias onde antes eram preenchidas por gente, muita dela, se não a maioria, estrangeira. E a luz. Era a cidade branca dos poetas e escritores, dos amantes e sonhadores, de tanto calor humano e dos cantores. Dos solitários, também. Era a cidade cheia até à chegada da pandemia.

(chegado aqui, está difícil um final feliz e acolhedor)

Pois bem... ao fim de um mês de viagem, com ventos favoráveis, pegou no radio- satélite, ligou-o ao computador e, numa chamada para casa, soube que ia ser avô. Disse à mulher que desistia. Voltava para trás. Não tinha de provar nada a ninguém e, muito menos a ele próprio. A única razão de desistir era a vontade de ver a neta nascer. Essa foi a decisão mais importante que tomou na sua já longa vida.


2 comentários:

  1. Uma viagem que não chegou a seu terminus, mas o destino reservou uma grande alegria, em que o regresso fez todo o sentido.
    Um texto sublime.
    Beijinhos
    :)
    Beijinhos

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  2. Muito lindo que ficou esse teu conto, gostei imenso de ter passeado por aqui, tudo muito bonito, boa continuação de um fantástico e maravilhoso mês de Maio para ti, muita saúde, paz e alegria na tua vida, muitos beijinhos e fica bem!!

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